Instituto Religare iniciou suas atividades com o objetivo especifico de suprir uma demanda identificada ao longo de um processo de 15 anos de trabalho, para a inserção social e cultural de jovens que cumpriam medida sócio educativa. Partindo da experiência vivida com esse público, sobreveio a necessidade em dar continuidade ao trabalho após o cumprimento da medida. Criou-se assim, o Instituto Religare, um espaço para receber os jovens egressos e experiênciar com eles o fazer artístico e o viver em sociedade. Após alguns anos de vivência com o grupo inicial, partimos para a experiência de união com jovens de baixa renda que vinham de diversas comunidades, regiões de alto risco, em busca do fazer artístico. A experiência foi muito bem sucedida. Nosso grupo inicial tem hoje uma apropriação crítica e criativa dentro das atividades com eles desenvolvidas. Ganharam competência cultural e agem como multiplicadores. Hoje somos um centro de encontro, estudo e difusão da cultura, dando continuidade ao atendimento de nosso foco inicial.

RELIGARE - não implica credos, rituais ou instituições. Não implica fiéis e infiéis. Implica basicamente re-conectar-se, com a vida, com o mundo, com o todo. E com seu vizinho.


LEITURAS

HOTEL HUANDA


Conforme sabemos, a ação imperialista no continente africano foi responsável por várias situações de conflito entre as populações nativas. Um dos mais lamentáveis frutos desse tipo de intervenção se desenvolveu quando os belgas, no início do século XX, se instalaram na região de Ruanda. Ali temos a presença dos tutsis e hutus, duas etnias que há muito ocupavam a mesma região.

Do ponto de vista cultural, tutsis e hutus partilhavam de uma série de similaridades por falarem a mesma língua e seguirem um mesmo conjunto de tradições. Contudo, quando os belgas chegaram à região, observaram que estes dois grupos étnicos se diferenciavam por conta de algumas características físicas. Geralmente, os tutsis têm maior estatura, são esguios e tem um tom de pele mais claro.

Na perspectiva dos belgas, essas características eram suficientes para acreditarem que os hutus – mesmo sendo a maioria da população – seriam moralmente e intelectualmente inferiores aos tutsis. Dessa forma, os imperialistas criaram uma situação de ódio e exclusão socioeconômica entre os habitantes de Ruanda. A política distintiva dos belgas chegou ao ponto de registrar nas carteiras de identidade quem era tutsi e hutu.

Na década de 1960, seguindo o processo de descolonização do pós-Segunda Guerra, o território ruandês foi deixado pelos belgas. Em quase meio século de dominação, ódio entre as duas etnias transformara aquela região em uma bomba prestes a explodir. Cercados por uma série de problemas, a maioria hutu passou a atribuir todas as mazelas da nação à população tutsi.

Pressionados pelo revanchismo, os tutsis abandonaram o país e formaram imensos campos de refugiados em Uganda. Mesmo acuados, os tutsis e alguns hutus moderados se organizaram politicamente com o intuito de derrubar o governo do presidente Juvenal Habyarimana e retornar ao país. Com o passar do tempo, esta mobilização deu origem à Frente Patriótica Ruandense (FPR), liderada por Paul Kagame.

Na década de 1990, vários incidentes demarcavam a clara insustentabilidade da relação entre tutsis e hutus. No ano de 1993, um acordo de paz entre o governo e os membros do FPR não teve forças para resolver o conflito. O ponto alto dessa tensão ocorreu no dia 6 de abril de 1994, quando um atentado derrubou o avião que transportava o presidente Habyarimana. Imediatamente, a ação foi atribuída aos tutsis ligados ao FPR.

Na cidade de Kigali, capital da Ruanda, membros da guarda presidencial organizaram as primeiras perseguições contra os tutsis e hutus moderados que formavam o grupo de oposição política no país. Em pouco tempo, várias estações de rádio foram utilizadas para conclamar outros membros da população hutu a matarem os “responsáveis naturais” daquele atentado.

A propagação do ódio resultou na formação de uma milícia não oficial chamada Interahamwe, que significa “aqueles que atacam juntos”. Em pouco mais de três meses, uma terrível onda de violência tomou as ruas de Ruanda provocando a morte de 800 mil tutsis. O conflito contra as tropas governistas acabou sendo vencido pelos membros do FPR, que tentaram estabelecer um regime conciliatório.
Apesar dos esforços, a matança e a violência em Ruanda fizeram com que cerca de dois milhões de cidadãos fugissem para os campos de refugiados formados no Congo. Nesta região, o problema entre as etnias tutsi e hutu continuaram a se desenvolver em várias situações de conflito. O atual governo de Ruanda, liderado por tutsis, promoveu algumas invasões ao Congo em busca de alguns líderes radicais da etnia hutu.

Nos últimos anos, a prisão do guerrilheiro tutsi Laurent Nkunda e as experiências bem sucedidas nos campos de desmobilização vêm amenizando a convivência entre tutsis e hutus. Além disso, o presidente Paul Kagame anulou os antigos registros que diferenciavam a população por etnia. Em algumas cidades de pequeno porte, já é possível observar que os traumas do genocídio de 1994 estão sendo superados.


Por Rainer Sousa
Graduado em História
Equipe Brasil Escola

 
“Arte é o retrato do desenvolvimento humano, e é a tinta que pinta o novo, o que está por vir; na arte palavras já ditas, reditas como novas palavras, formam pensares e outros dizeres; arte é a música pintada no som do vento; é uma imagem apreendida em uma foto, livre na capitação, na apreciação, na leitura desta imagem. É o produzir, o olhar, o sentir, o apreciar, é o reflexo do eu, do outro e do mundo, traduzido de várias formas. Arte é conteúdo real e flexível, é transformação de recursos, naturais, materiais, humanos. Fazer e apreciar arte é conhecer e produzir conhecimento, de um modo particular e peculiar que só a arte pode propiciar”. “Ser arte” é ser humano! Magda Crudelli


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Crack - Entrevista com Jairo Werner - “Ninguém sabe como lidar com o crack”

Para o psiquiatra e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Jairo Werner, um dos principais problemas em relação ao tratamento de usuários de crack no país é a falta de um protocolo de tratamento. Segundo ele, até mesmo o meio acadêmico enfrenta sérias dificuldades nesse aspecto. “Temos que evoluir muito o trabalho para chegar a um consenso”, pondera. Leia a entrevista abaixo: 

Por Thalita Pires


Fórum - O crack realmente causa mais dependência que outras drogas?

Jairo Werner - O crack causa dependência de forma similar a todas as outras drogas. A diferença é o tempo que esse processo leva. O crack chega mais rapidamente ao cérebro, o caminho da droga pelo pulmão é mais curto. Logo depois da tragada, o cérebro é “inundado” por neurotransmissores, mas não é isso que causa a dependência. A sensação é muito forte e isso faz com que a pessoa queira fumar outra vez, o mais rápido possível. Não gosto de falar isso porque posso ser mal-compreendido, mas a violência da sensação que o crack proporciona é da ordem de vários orgasmos. A pessoa não vai ter orgasmos fumando crack, mas a magnitude do efeito é semelhante. É por isso que o crack causa uma dependência mais rápida.

Fórum - Por que o crack é a escolha das crianças de rua, se o preço de um cigarro de maconha e de uma pedra de crack é semelhante?

Werner - A maconha relaxa, o crack estimula. Pessoas que não têm o que comer não vão fumar maconha, que além de relaxar dá mais fome, mas sim o crack, que faz com que todas as outras sensações sejam suplantadas.

Fórum - É possível dizer que o crack deixou de ser uma droga usada por moradores de rua e passou para a classe média?

Werner - Isso é um processo dinâmico. Não é porque a droga começou a ser usada principalmente por moradores de rua que isso não pode mudar. O tipo de usuário muda sim. Minha esperiência clínica mostra que a droga está chegando na classe média. Há dez anos não víamos dependentes de crack de classe média, hoje isso já acontece.

Fórum - Qual a sua opinião sobre o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, lançado no ano passado pelo governo federal?

Werner - Qualquer plano já é alguma coisa, já que antes não havia nada. Mas é bom lembrar que, na UERJ, denunciamos a existência do crack há cinco anos. Isso significa que essa iniciativa já chega atrasada. O problema é que o crack já está em uma dimensão muito maior do que qualquer plano.

Fórum – Dentro dele, quais seriam os pontos positivos? O texto enfatiza, por exemplo, a atuação de atores sociais como igrejas e líderes comunitários.

Werner - Sim, a participação social é importantíssima. Quando a comunidade que cerca o usuário está envolvida, é possível fornecer uma acolhida imediata. Isso é importante porque o usuário ou dependente não vai buscar ajuda no começo. Se isso acontecer, vai ser apenas quando sua situação chegar num nível muito perigoso. Então, essa é uma forma de buscar o usuário ativamente, e não apenas esperar que ele busque tratamento.

Fórum – E em relação à rede de atendimento ao usuário?

Werner - Temos um atendimento, hoje, que não é uma rede. Precisamos de equipamentos de saúde em todos os níveis, que sejam de fato integrados. Tudo tem que trabalhar junto, a educação, a saúde, a assistência social. Os municípios, no entanto, são muito setorizados, os secretários, em vez de colaborarem, brigam entre si. Esse é um problema que um plano federal pode ajudar a resolver.

Fórum – E quais as falhas, o que pode dar errado no Plano?

Werner - Tenho medo, por exemplo, de que se criem “cracolândias terapêuticas”, um depósito de viciados. Isso já se mostrou ineficaz. O crack é diferente de outras drogas. O problema é que não temos especialistas nem métodos reconhecidos para tratar os dependentes. Uma parte desses pacientes são crianças, mas ninguém sabe lidar com isso. Em resumo, ninguém sabe como lidar com o crack não há protocolo de tratamento e é nisso que devemos trabalhar.

Fórum – O meio acadêmico não pode ajudar a criar esse protocolo de tratamento?

Werner - A universidade também não sabe como lidar com isso. Temos que evoluir muito o trabalho para chegar a um consenso.

Fórum - O que impede a criação desse consenso?

Werner - Nossa discussão sobre drogas é muito ideologizada. Algumas pessoas querem segregar o usuário, tratá-lo separadamente e depois reintegrá-lo à sociedade. Isso já foi tentado e não funcionou. Outros acham que o problema da dependência é estritamente social, então o usuário deve ser deixado como está, pois sua situação só vai melhorar com uma mudança da sociedade. Esses dois extremos ficam debatendo e não chegamos a conclusão alguma.

Nos EUA, por exemplo, existe a Justiça Terapêutica. A pessoa deixa de ser processada por alguns crimes se aceitar o tratamento contra a dependência. Hoje isso jamais seria aceito no Brasil, por que há quem trate o usuário como criminoso. Aqui ou querem o autoritarismo ou a permissividade; ou as crianças ficam nas ruas ou vão para mini-Carandirus. Nenhuma dessas opções é a certa.



A discreta e sedutora "História das mulheres"*
Diogo da Silva Roiz

Mestre em História pela UNESP, Campus de Franca. Coordenador do curso de História da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Campus de Amambai. diogosr@yahoo.com.br

As mulheres conquistaram o direito de terem a sua história também escrita no século XX. A "história das mulheres" é hoje um campo de pesquisa consolidado em universidades do mundo todo (ainda que em cada país ocorram níveis diferenciados de desenvolvimento e aceitação do campo). Percebe-se, cada vez mais, que a mulher não apenas tem história, mas também fez e faz (a sua) história. De um lado, a conquista do direito ao voto, ao trabalho (e a uma carreira profissional), a uma igualdade de direitos entre os sexos, portanto, buscados com afinco pelos movimentos feministas, a partir do início do século XX, deram margem aos estudos produzidos (em maior escala) – a partir dos anos de 1960. De outro, com os movimentos de massa daquela década, que repercutiram em todo o mundo, ganhando ainda maior repercussão com os movimentos estudantis de "Maio de 1968", vieram também a justificar ainda mais os estudos sobre a mulher, principalmente, com a abertura dos campos de pesquisa produzidos nos anos de 1970.

Mas nem sempre foi assim. Pelo contrário, durante muito tempo as mulheres, e a escrita de sua história, foi um tema opaco e sem sentido, particularmente para pesquisadores do sexo masculino. Tanto nas fontes, quanto nas pesquisas, o que se via era o silêncio, delas e sobre elas, que se prolongava ainda mais com a escassez de documentos, os quais, quase sempre, não demonstravam a sua presença. O que torna imprescindíveis os seguintes questionamentos: Como a mulher começou a aparecer nos estudos históricos como tema de pesquisa? O que é a "história das mulheres"? Quais os procedimentos e documentos mais adequados para perceber sua presença na história? Porque é importante escrever a "história das mulheres"?

Por mais de três décadas, a historiadora Michelle Perrot, uma das maiores estudiosas desse tema na França (e reconhecida no mundo todo), sentiu-se incomodada (e inspirada) por esses questionamentos, geralmente efetuados por colegas do sexo masculino, que a levaram a se engajar política e intelectualmente nesse projeto de escrita de uma "nova" história, onde as mulheres fossem incluídas (por direito e por importância) e não ficassem mais em silêncio.

Fruto direto dessas pesquisas, As mulheres ou os silêncios da História reúne parcela significativa de sua contribuição sobre o tema. Ao longo de seus 23 capítulos1 publicados entre 1974 e 1998 em revistas especializadas e em livros, a autora passa em revista as principais pesquisas, abordagens e documentos (pesquisados) sobre a "história das mulheres". Aí incluindo sua trajetória no interior desses debates (em que esteve desde o final da década de 1960) e sua contribuição para o tema, em que ainda se destaca a obra A história das mulheres no Ocidente (publicada originalmente entre 1990 e 1992), organizada em cinco volumes com Georges Duby (e a contribuição de outros pesquisadores e pesquisadoras) entre o final dos anos de 1980 e início dos anos de 1990.

De forma didática, a autora dividiu a obra em cinco partes: a) na primeira, Traços, em que aparece a discussão de diários e correspondências do século XIX (por ela pesquisados), em quatro capítulos (29-146), nos quais, segundo ela, a "dificuldade da história das mulheres deve-se inicialmente ao apagamento de seus traços, tanto públicos quanto privados"; b) na segunda, Mulheres no trabalho, principalmente o do lar e o das fábricas, com seis capítulos (149-258), em que, segundo ela, a "questão do trabalho constituiu um front pioneiro da pesquisa sobre as mulheres"; c) na terceira, Mulheres na cidade, apresenta-se sua ação na política e nos debates sobre gênero, cidadania e direitos, em cinco capítulos (261-360), que segundo a autora,

a história das mulheres interessou-se inicialmente por seus papéis privados, observando-os, de certa forma, lá onde elas estavam, em seus corpos, sua casa, seus gestos cotidianos, correndo o risco de fechá-los em uma repetição (...) [mas] a questão do poder colocou-se rapidamente, pois ela funda a relação entre os sexos (261);

d) na quarta, Figuras, Perrot estuda o perfil de Flora Tristan e George Sand, em dois capítulos (363-424), tendo em vista que:

Flora Tristan e George Sand não gostavam muito uma da outra. Elas se impacientavam com seus respectivos comportamentos. Flora invejava George, que já era célebre, enquanto ela penava para poder publicar. George se irritava com as recriminações de Flora. Na verdade, estas contemporâneas mal se cruzavam. Flora morreu em 1844 e George, trinta e dois anos mais tarde (1876). No entanto, diversos traços as aproximam, a ponto que se pôde falar de 'vidas no espelho': sua revolta contra a condição das mulheres, que ambas experimentaram na carne; sua vontade de justiça social (...) sua idêntica preocupação com a moral em política (363);

e) finalmente, na quinta parte, Debates, ela apresenta alguns dos principais debates e abordagens sobre o tema, ao longo de seis capítulos (427-503), que avaliam, principalmente, as obras de Georges Duby, Mona Ozouf e Michel Foucault, pois, como diz a "história 'das mulheres' coloca numerosas questões, a começar por seu título, constituindo as mulheres em objeto (...) [que] é também um tanto fragmentado" (427-8).

O livro é, portanto, uma exposição amadurecida e articulada, por mais de trinta anos, sobre o que é, e como deve e pode ser feita, a "história das mulheres". Mas para poder atingir todos os objetivos almejados na obra, a autora diz que, antes, foi necessário definir por que houve tamanho silêncio sobre a questão, e como o tema passou a ser de interesse de pesquisadoras no mundo todo. Para ela,

a irrupção de uma presença e de uma fala feminina em locais que lhes eram até então proibidos, ou pouco familiares, é uma inovação do século 19 que muda o horizonte sonoro. Subsistem, no entanto, muitas zonas mudas e, no que se refere ao passado, um oceano de silêncio, ligado à partilha desigual dos traços, da memória e, ainda mais, da História, este relato que, por muito tempo, 'esqueceu' as mulheres, como se, por serem destinadas à obscuridade da reprodução, inenarrável, elas tivessem fora do tempo, ou ao menos fora do acontecimento (9).

Isso quer dizer que durante muito tempo

as mulheres [foram] mais imaginadas do que descritas ou contadas, e fazer a sua história é, antes de tudo, inevitavelmente, chocar-se contra este bloco de representações que as cobre e que é preciso necessariamente analisar, sem saber como elas mesmas as viam e as viviam (11).

De acordo com ela, esse

...defeito de registro primário é agravado por um déficit de conservação dos traços. Pouca coisa nos arquivos públicos, destinados aos atos da administração e do poder, onde as mulheres aparecem apenas quando perturbam a ordem, o que justamente elas fazem menos do que os homens, não em virtude de uma natureza rara, mas devido à sua fraca presença, à sua hesitação também em dar queixa quando elas são as vítimas. Conseqüentemente, os arquivos de polícia e de justiça, infinitamente preciosos para o conhecimento do povo, homens e mulheres, devem ser analisados até na forma sexuada de seu abastecimento" (12).

Por outro lado, diz a autora, "a consideração crescente da vida privada, familiar ou pessoal, modificou o olhar negligente que se tinha sobre as correspondências ou os diários íntimos" nos estudos históricos. No entanto, o

volume e a natureza das fontes das mulheres e sobre as mulheres variam conseqüentemente ao longo do tempo. [Por isso] longe de ser fruto do acaso, a constituição do Arquivo, da mesma forma que a constituição ainda mais sutil da memória, é o resultado de uma sedimentação seletiva produzida pelas relações de força e pelos sistemas de valor [e o] mesmo ocorre no que concerne à narrativa histórica, outro nível destes silêncios encaixados uns nos outros (14).

Não era por acaso que a autora se questionasse como esse silêncio foi rompido e, em seguida, se debruçasse em como as coisas aconteceram na França, lugar onde ela atua como pesquisadora do tema desde a década de 1960. Como esclarece, em cada país houve especificidades quanto ao desenvolvimento e a valorização dos estudos sobre a mulher. No caso da França, foi fundamental a contribuição da obra pioneira de Georges Duby, a partir dos anos de 1970. No campo das Ciências Humanas, os estudos sobre o sexo e a sexualidade humana também foram centrais para o desenvolvimento deste campo de pesquisa. De acordo com ela, três fatores foram fundamentais: a) os científicos "ligados à crise dos grandes paradigmas explicativos e à renovação dos contatos disciplinares nas décadas de 1960-70"; b) os sociológicos, em função da

feminização da universidade, inicialmente no nível do público, e depois, mais tardiamente, dos professores, favoreceu o nascimento de novas expectativas, de questionamentos diferentes, e conseqüentemente o desenvolvimento de cursos e pesquisas sobre as mulheres. As paixões e os interesses se conjugam, de maneira mais clássica, na constituição de um novo "campo" (17);

c) e os políticos, pois, "o movimento de liberação das mulheres – o MLF – surgido nos anos 70 dos silêncios (mais um deles) de Maio de 1968 sobre as mulheres". Nesse sentido, Perrot indica sua própria trajetória e como percorreu esses caminhos na França, no decorrer de suas pesquisas. Em suas palavras:

Experiência insubstituível para aquelas e aqueles que a fizeram, a história das mulheres (...) [no entanto] não mudou nem a atitude histórica, ainda reservada, nem as instituições universitárias, que se opõem a lhe dar um lugar, ainda que modesto. Os inevitáveis conflitos de território conduzem às vezes a tensões, internas e externas aumentadas, e cuja conta pode vir a ser paga pelas pesquisadoras mais jovens. E a França, sob este ângulo, parece mais arcaica do que a maioria de seus vizinhos. A história das mulheres também não mudou muito o lugar ou a "condição" destas mulheres. No entanto, permite compreendê-los melhor. Ela contribui para sua consciência de si mesmas, da qual é certamente ainda um sinal (26).

Assim, compreender, os percalços que ainda subsistem na pesquisa que empreende a escrita da história das mulheres não é uma tarefa nada fácil. Ao percorrer, no século XIX, as razões que levaram aos silêncios sobre as mulheres e, parcialmente, inviabilizaram a escrita de sua história, indica que:

Da História, a mulher é diversas vezes excluída. Ela o é, inicialmente, na narrativa, que, passadas às efusões românticas, constitui-se como encenação dos acontecimentos políticos. O positivismo opera um verdadeiro refluxo no tema feminino e, mais amplamente, no cotidiano. O austero Seignobos, grande mestre dos estudos históricos na Universidade, expulsa Eva, ao passo que as paredes da Sorbonne cobrem-se de afrescos em que flutuam diáfanas alegorias femininas (...). A "profissão de historiador" é um trabalho de homens que escrevem a história no masculino. Os campos que eles abordam são os da ação e do poder masculino, até mesmo quando eles se aventuram por novos territórios (...). Também – e esta é a segunda volta da chave – os materiais utilizados pelos historiadores (arquivos diplomáticos, ou administrativos, documentos parlamentares, biografias ou publicações periódicas...) são o produto de homens que têm o monopólio da escrita tanto quanto da coisa pública (...). Essa exclusão é, aliás, apenas a tradução, redobrada, de uma outra exclusão: a das mulheres da vida e do espaço público na Europa Ocidental no século XIX (197-8).

Para ela, uma exceção no século XIX sobre essa questão foi Jules Michelet, que empreendeu uma exaustiva pesquisa sobre a feitiçaria. Ressalta que as raras exceções de pesquisa e trabalhos sobre a mulher no período se devem ao próprio tipo de temas e abordagens então praticados nos estudos históricos que inviabilizavam a presença feminina no processo histórico e a percepção de sua existência.

Por outro lado, Perrot observa como a sociedade (entendida aqui no masculino) se preocupava em pensar o que era o "trabalho de mulher":

Os homens do século 19 europeu tentaram, de fato, isolar a força crescente das mulheres, tão fortemente sentida na era das Luzes e nas Revoluções, cujas infelicidades lhes seriam muitas vezes atribuídas, não somente enclausurando-as em casa, e excluindo-as de certos domínios de atividade – a criação literária e artística, a produção industrial e as trocas, a política e a história – mas também, e ainda mais, canalizando sua energia para o doméstico revalorizado, e até mesmo para o social domesticado (279).

Para ela, a "história das mulheres escreve[u]-se inicialmente sobre o modo da exceção: exceção das pioneiras que quebram o silêncio". Por isso, é possível entender porque ao longo de muitos destes ensaios, a autora volta a ressaltar incansavelmente os tipos de silêncio impostos às mulheres do passado – e a escrita de uma história das mulheres no século XX – enfatizando os detalhes, como os olhares sobre o corpo feminino, os espaços de fala e debates femininos, e a função da política, da cidadania e das guerras sobre a ação feminina. Por isso também, se preocupa tanto em equacionar os debates sobre a "história das mulheres" e os avanços alcançados pelas pesquisas ao longo do tempo. Em função de todas essas qualidades, este livro é uma bela contribuição para o tema, tema este que está em permanente processo de construção.


* Resenha do livro de Michelle Perrot, As mulheres ou os silêncios da história, 2005. 1 A edição francesa conta com 25, mas a tradução brasileira da obra não conseguiu a concessão de direitos para a publicação de dois ensaios.
Cadernos Pagú - UNICAMP



Este mundo da injustiça globalizada

José Saramago

Texto lido na cerimônia de encerramento do Fórum Social Mundial 2002

Começarei por vos contar em brevíssimas palavras um facto notável da vida camponesa ocorrido numa aldeia dos arredores de Florença há mais de quatrocentos anos. Permito-me pedir toda a vossa atenção para este importante acontecimento histórico porque, ao contrário do que é corrente, a lição moral extraível do episódio não terá de esperar o fim do relato, saltar-vos-á ao rosto não tarda.
Estavam os habitantes nas suas casas ou a trabalhar nos cultivos, entregue cada um aos seus afazeres e cuidados, quando de súbito se ouviu soar o sino da igreja. Naqueles piedosos tempos (estamos a falar de algo sucedido no século XVI) os sinos tocavam várias vezes ao longo do dia, e por esse lado não deveria haver motivo de estranheza, porém aquele sino dobrava melancolicamente a finados, e isso, sim, era surpreendente, uma vez que não constava que alguém da aldeia se encontrasse em vias de passamento. Saíram portanto as mulheres à rua, juntaram-se as crianças, deixaram os homens as lavouras e os mesteres, e em pouco tempo estavam todos reunidos no adro da igreja, à espera de que lhes dissessem a quem deveriam chorar. O sino ainda tocou por alguns minutos mais, finalmente calou-se. Instantes depois a porta abria-se e um camponês aparecia no limiar. Ora, não sendo este o homem encarregado de tocar habitualmente o sino, compreende-se que os vizinhos lhe tenham perguntado onde se encontrava o sineiro e quem era o morto. “O sineiro não está aqui, eu é que toquei o sino”, foi a resposta do camponês. “Mas então não morreu ninguém?”, tornaram os vizinhos, e o camponês respondeu: “Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta.”
Que acontecera? Acontecera que o ganancioso senhor do lugar (algum conde ou marquês sem escrúpulos) andava desde há tempos a mudar de sítio os marcos das estremas das suas terras, metendo-os para dentro da pequena parcela do camponês, mais e mais reduzida a cada avançada. O lesado tinha começado por protestar e reclamar, depois implorou compaixão, e finalmente resolveu queixar-se às autoridades e acolher-se à protecção da justiça. Tudo sem resultado, a expoliação continuou. Então,
desesperado, decidiu anunciar urbi et orbi (uma aldeia tem o exacto tamanho do mundo para quem sempre nela viveu) a morte da Justiça. Talvez pensasse que o seu gesto de exaltada indignação lograria comover e pôr a tocar todos os sinos do universo, sem diferença de raças, credos e costumes, que todos eles, sem excepção, o acompanhariam no dobre a finados pela morte da Justiça, e não se calariam até que ela fosse ressuscitada. Um clamor tal, voando de casa em casa, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade, saltando por cima das fronteiras, lançando pontes sonoras sobre os rios e os mares, por força haveria de acordar o mundo adormecido… Não sei o que sucedeu depois, não sei se o braço popular foi ajudar o camponês a repor as estremas nos seus sítios, ou se os vizinhos, uma vez que a Justiça havia sido declarada defunta, regressaram resignados, de cabeça baixa e alma sucumbida, à triste vida de todos os dias. É bem certo que a História nunca nos conta tudo…
Suponho ter sido esta a única vez que, em qualquer parte do mundo, um sino, uma campânula de bronze inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres humanos, chorou a morte da Justiça. Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça. Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira quotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exacto e rigoroso sinónimo do ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável à felicidade do espírito como indispensável à vida é o alimento do corpo. Uma justiça exercida pelos tribunais, sem dúvida, sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e sobretudo, uma justiça que fosse a emanação espontânea da própria sociedade em acção, uma justiça em que se manifestasse, como um iniludível imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano assiste.
Mas os sinos, felizmente, não tocavam apenas para planger aqueles que morriam. Tocavam também para assinalar as horas do dia e da noite, para chamar à festa ou à devoção dos crentes, e houve um tempo, não tão distante assim, em que o seu toque a rebate era o que convocava o povo para acudir às catástrofes, às cheias e aos incêndios, aos desastres, a qualquer perigo que ameaçasse a comunidade. Hoje, o papel social dos sinos encontra-se limitado ao cumprimento das obrigações rituais e o gesto iluminado do camponês de Florença seria visto como obra desatinada de um louco ou, pior ainda, como simples caso de polícia. Outros e diferentes são os sinos que hoje defendem e afirmam a possibilidade, enfim, da implantação no mundo daquela justiça companheira dos homens, daquela justiça que é condição da felicidade do espírito e até, por mais surpreendente que possa parecer-nos, condição do próprio alimento do corpo. Houvesse essa justiça, e nem um só ser humano mais morreria de fome ou de tantas doenças que são curáveis para uns, mas não para outros. Houvesse essa justiça, e a existência não seria, para mais de metade da humanidade, a condenação terrível que objectivamente tem sido. Esses sinos novos cuja voz se vem espalhando, cada vez mais forte, por todo o mundo são os múltiplos movimentos de resistência e acção social que pugnam pelo estabelecimento de uma nova justiça distributiva e comutativa que todos os seres humanos possam chegar a reconhecer como intrinsecamente sua, uma justiça protectora da liberdade e do direito, não de nenhuma das suas negações. Tenho dito que para essa justiça
dispomos já de um código de aplicação prática ao alcance de qualquer compreensão, e que esse código se encontra consignado desde há cinquenta anos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aquelas trinta direitos básicos e essenciais de que hoje só vagamente se fala, quando não sistematicamente se silencia, mais desprezados e conspurcados nestes dias do que o foram, há quatrocentos anos, a propriedade e a liberdade do camponês de Florença. E também tenho dito que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tal qual se encontra redigida, e sem necessidade de lhe alterar sequer uma vírgula, poderia substituir com vantagem, no que respeita a rectidão de princípios e clareza de objectivos, os programas de todos os partidos políticos do orbe, nomeadamente os da denominada esquerda, anquilosados em fórmulas caducas, alheios ou impotentes para enfrentar as realidades brutais do mundo actual, fechando os olhos às já evidentes e temíveis ameaças que o futuro está a preparar contra aquela dignidade racional e sensível que imaginávamos ser a suprema aspiração dos seres humanos. Acrescentarei que as mesmas razões que me levam a referir-me nestes termos aos partidos políticos em geral, as aplico por igual aos sindicatos locais, e, em consequência, ao movimento sindical internacional no seu conjunto. De um modo consciente ou inconsciente, o dócil e burocratizado sindicalismo que hoje nos resta é, em grande parte, responsável pelo adormecimento social decorrente do processo de globalização económica em curso. Não me alegra dizê-lo, mas não poderia calá-lo. E, ainda, se me autorizam a acrescentar algo da minha lavra particular às fábulas de La Fontaine, então direi que, se não interviermos a tempo, isto é, já, o rato dos direitos humanos acabará por ser implacavelmente devorado pelo gato da globalização económica.
E a democracia, esse milenário invento de uns atenienses ingénuos para quem ela significaria, nas circunstâncias sociais e políticas específicas do tempo, e segundo a expressão consagrada, um governo do povo, pelo povo e para o povo? Ouço muitas vezes argumentar a pessoas sinceras, de boa fé comprovada, e a outras que essa aparência de benignidade têm interesse em simular, que, sendo embora uma evidência indesmentível o estado de catástrofe em que se encontra a maior parte do planeta, será precisamente no quadro de um sistema democrático geral que mais probabilidades teremos de chegar à consecução plena ou ao menos satisfatória dos direitos humanos. Nada mais certo, sob condição de que fosse efectivamente democrático o sistema de governo e de gestão da sociedade a que actualmente vimos chamando democracia. E não o é. É verdade que podemos votar, é verdade que podemos, por delegação da partícula de soberania que se nos reconhece como cidadãos eleitores e normalmente por via partidária, escolher os nossos representantes no parlamento, é verdade, enfim, que da relevância numérica de tais representações e das combinações políticas que a necessidade de uma maioria vier a impor sempre resultará um governo. Tudo isto é verdade, mas é igualmente verdade que a possibilidade de acção democrática começa e acaba aí. O eleitor poderá tirar do poder um governo que não lhe agrade e pôr outro no seu lugar, mas o seu voto não teve, não tem, nem nunca terá qualquer efeito visível sobre a única e real força que governa o mundo, e portanto o seu país e a sua pessoa: refiro-me, obviamente, ao poder económico, em particular à parte dele, sempre em aumento, gerida pelas empresas multinacionais de acordo com estratégias de domínio que nada têm que ver com aquele bem comum a que, por definição, a democracia aspira. Todos sabemos que é assim, e contudo, por uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos deixa ver a nudez crua dos factos, continuamos a falar de democracia como se se tratasse de algo vivo e actuante, quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie de missa laica. E não nos apercebemos, como se para isso não bastasse ter olhos, de que os nossos governos, esses que para o bem ou para o mal
elegemos e de que somos portanto os primeiros responsáveis, se vão tornando cada vez mais em meros “comissários políticos” do poder económico, com a objectiva missão de produzirem as leis que a esse poder convierem, para depois, envolvidas no açúcares da publicidade oficial e particular interessada, serem introduzidas no mercado social sem suscitar demasiados protestos, salvo os certas conhecidas minorias eternamente descontentes…
Que fazer? Da literatura à ecologia, da fuga das galáxias ao efeito de estufa, do tratamento do lixo às congestões do tráfego, tudo se discute neste nosso mundo. Mas o sistema democrático, como se de um dado definitivamente adquirido se tratasse, intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não se discute. Ora, se não estou em erro, se não sou incapaz de somar dois e dois, então, entre tantas outras discussões necessárias ou indispensáveis, é urgente, antes que se nos torne demasiado tarde, promover um debate mundial sobre a democracia e as causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida política e social, sobre as relações entre os Estados e o poder económico e financeiro mundial, sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a democracia, sobre o direito à felicidade e a uma existência digna, sobre as misérias e as esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos simples seres humanos que a compõem, um por um e todos juntos. Não há pior engano do que o daquele que a si mesmo se engana. E assim é que estamos vivendo.
Não tenho mais que dizer. Ou sim, apenas uma palavra para pedir um instante de silêncio. O camponês de Florença acaba de subir uma vez mais à torre da igreja, o sino vai tocar. Ouçamo-lo, por favor.